Jussara Lucena, escritora

Textos

O Cubo Dumont

A manhã estava ensolarada, um dia perfeito para uma viagem. Poucos veículos na pista, algo incomum para aquele dia e horário. Sintonizei o rádio no momento em que uma de minhas canções favoritas tocava. Tudo combinava com o momento que eu vivia. O novo trabalho era bastante desafiador, pois eu poderia colocar em prática muitas de minhas ideias. A mudança também me permitiria ficar próximo de minhas origens, afinal nunca desisti de procurar uma família, caso existisse.
À minha frente apenas uma reta, ladeada por grandes extensões de terras plantadas com soja e milho. Resolvi acelerar um pouco mais.
Num outdoor à beira da estrada, uma organização apelava por fundos para combate a doenças e fome em países afetados por guerras e epidemias. Isto me fez lembrar o quanto o mundo era desigual. Eu me sentia impotente em transformá-lo, mas reconheço que sempre me acomodei. Quando algo não nos atinge diretamente é mais difícil que ajamos para mudar. No mesmo momento, em algum lugar do planeta, alguém morria vítima de fome, doença ou violência e eu aqui, no conforto de um automóvel, trajando belas roupas, rumo a um trabalho de boa remuneração.
Voltei a atenção para a estrada no momento em que houve uma interferência no rádio. Distrai-me com os botões no volante do carro, tentando uma nova sintonia. Algo enorme, surgido do nada, caiu na pista à minha frente. Tinha o formato de um cubo. Freei, não houve tempo.
Quando acordei, uma voz suave me cumprimentou:
– Boa tarde! São quatorze horas e trinta. A temperatura, lá fora é de 22° C, a umidade relativa do ar está em 50%. Teremos uma chuva leve mais tarde. Neste momento o céu está parcialmente nublado. Aguarde só alguns instantes por uma de nossas assistentes. Enquanto isso, permaneça deitado! Talvez tenha alguma dificuldade com sua fala. Não se preocupe, estou interligada com a sua frequência cerebral. Basta pensar que eu realizo a interface com os seus interlocutores.
A voz era perfeita, nem de longe lembrava um som digital. Parecia sussurrar nos meus ouvidos.
Eu não me sentia fraco, porém tinha alguma dificuldade com os movimentos. Tentei reconhecer o ambiente. Tudo era muito claro, limpo. Apesar de lembrar um hospital, parecia bastante humanizado. Pensei ter ouvido o barulho de folhas ao vento. Olhei para a parede ao lado. O ambiente se transformava, reproduzindo parte do sítio do meu avô, onde eu costumava brincar com minha irmã e alguns de meus primos. Eu podia ouvir o som da risada da Nina quando encontrei uma aranha sobre o meu ombro. Tive a impressão de poder tocar tudo aquilo.
Quando pensei em estender a minha mão, percebi algo diferente: não era a minha mão, nem meus braços. Comecei a tocar o meu rosto, o nariz, as orelhas e o pescoço. Tudo me era estranho. Com algum esforço, ergui uma das pernas. Eu calçava 42, o pé que eu visualizava era maior. Também me dei conta que eu não usava os meus óculos, mas minha visão estava perfeita.
Fiquei agitado. A voz ressurgiu pedindo que eu me tranquilizasse. Em breve tudo seria explicado.
– Há quanto tempo estou aqui?
– São dezoito anos, nove meses, vinte e um dias, dez horas, doze minutos e dois segundos.
– Não é possível! Minhas mãos já teriam alguns sinais do tempo.
– Com os avanços da medicina, todos conservam traços mais juvenis. Mas no seu caso há outra explicação. A doutora Selene poderá lhe tirar as dúvidas.
– Boa tarde! Alguém falou o meu nome? Como se sente senhor Dumont?
– Boa tarde, doutora! Ainda não sei como me sinto? Tenho muitas dúvidas!
– Vá registrando tudo, AVA, vão surgir muitas mais!
– Então o nome dela é Ava?
– Sim, Assistente Virtual Avançado. Ela, além da interpretação de sua frequência cerebral, avalia os movimentos de seus olhos para complementar a comunicação. Assim que despertou ela já enviou informações para toda a equipe que lhe monitora.
– Então há mais gente por perto?
– Não tão perto. Nossos especialistas estão espalhados pelo mundo e conectados ao sistema através de Ava.
– Especialistas? O que houve comigo?
– Vamos com calma! Primeiro vamos chamar os fisioterapeutas e um fonoaudiólogo para alguns exercícios físicos, de deglutição e da recuperação da fala. Depois conversamos mais.
No dia seguinte a médica retornou. Eu já começava a melhorar meus movimentos e a estranhar ainda mais o corpo que me continha. Não atenderam aos meus apelos por um espelho.
– Senhor Dumont, qual a última coisa que se lembra?
– Eu estava feliz, guiando meu carro, quando um bloco enorme, em forma de cubo, caiu na frente do meu carro.
– Sim, o Cubo Dumont. Ele recebeu esse nome como referência ao seu caso. Foi ele quem salvou o senhor. Melhor, transformou o nosso planeta.
Resumidamente, Selene relatou:
“Logo depois da queda do objeto, o senhor foi atendido pelos paramédicos, com uma concussão. Fisicamente, seu corpo não apresentou muitos danos, pois o sistema de segurança do carro funcionou muito bem e, o cubo gerou uma espécie de barreira de proteção contra a batida, talvez o mesmo sistema que manteve integra a estrutura do dispositivo que encontramos dentro dele durante a entrada em nossa atmosfera. Mas o senhor não voltou a consciência como esperado.
No início, todos imaginaram que o objeto fosse uma espécie de satélite artificial ou parte de alguma aeronave ou espaçonave. Porém, logo que a estrutura resfriou, o objeto se abriu e um sistema digital começou a atuar. Nas telas aparentes começaram a surgir inscrições, como se fossem opções para escolha. Uma delas com caracteres similares aos cuneiforme, outros se assemelhavam aos hieróglifos e ainda um terceiro, similar ao aramaico.
Quando o equipamento foi levado para o laboratório de pesquisas espaciais, automaticamente ele se conectou com a Internet. A primeira informação que emitiu foi um diagnóstico sobre o seu estado de saúde. Descreveu como seria a evolução de seu quadro e sugeriu um transplante cerebral. Em seguida começou a gerar instruções de como realizar o procedimento, já que apesar das pesquisas disponíveis, não tínhamos tecnologia para realiza-lo. Conseguimos preservar a sua memória, a sua identidade, senhor Dumont.
Não sabemos se a tecnologia do cubo surgiu aqui na Terra, se foi fruto do acúmulo de conhecimento de alguma civilização antiga e extinta ou ainda se é alienígena, mas com base nas informações dele, grandes avanços tecnológicos aconteceram. O incrível é que o sistema possui uma espécie de autoproteção e cada vez que ele interpreta que suas informações serão mal utilizadas, bloqueia os dados.
Certa vez, o dispositivo foi roubado. Quando os usurpadores tentaram usar suas informações ele entrou em estado de hibernação, mas antes enviou os dados de sua localização. O cubo também passou a espalhar cópias de suas bases de dados para servidores espalhados por todo o planeta. Não há como eliminá-lo ou bloqueá-lo. É feito de materiais desconhecidos, indestrutíveis. Todo o conhecimento que ele possui, melhor o que ele deseja disponibilizar, é liberador para todos, sem distinção. Não há informação gerada por ele que possa ser manipulada ou tornada privativa. Não há como falsificar seus dados, eles apresentam identificadores que só o próprio cubo e seus clones conseguem reproduzir”.
Eu procurava ouvir tudo com atenção, porém a curiosidade com a minha situação não permitia que eu assimilasse tudo.
– Então, doutora, eu passei por um transplante de cérebro. Conseguiram preservar a minha memória, a minha identidade. E a minha alma?
– Bem, senhor Dumont. O seu transplante foi o primeiro, não o único realizado. Podemos dizer que os resultados são satisfatórios. Porém há algumas reações, que variam de indivíduo para indivíduo que sugerem algumas alterações de comportamento, que até o momento tentamos explicar sob o ponto de vista químico e físico. O cubo não nos ensinou a trabalhar questões espirituais, de fé. Assim, com a sua volta a consciência poderemos avaliar melhor o seu caso. Por hora, só dispomos das interpretações de suas atividades cerebrais coletadas por Ava.
– Quem foi o meu doador? Como esse corpo parece tão jovem?
– Calma! O senhor não sabia, até o dia de seu acidente, mas era portador de uma doença degenerativa. Assim, seu cérebro funcionava perfeitamente, mas os periféricos de seu corpo passaram a falhar. Então, procuramos um doador compatível. Com os cuidados e recomendações feitos pelo cubo, seu novo corpo passou por desaceleração metabólica e com isso, usando só o necessário, foi mantido com melhor integridade. Hoje os resultados dos estudos do seu caso são divididos com toda a humanidade. Aprendemos a fazer um uso mais racional do corpo, sob o ponto de vista energético. Economizando energia, usando as fontes corretas dessa energia, consumimos uma quantidade menor de alimentos, hoje suficientes para toda a população do planeta. Assim, mesmo as áreas mais carentes passaram a receber o que precisavam para sua sobrevivência, com qualidade de vida.
– Pode me conseguir um espelho?
– Acredito que agora, como já conhece um pouco da sua história enquanto estava adormecido, possa conhecer o seu novo rosto. Verá que o senhor não está tão diferente assim. Alguns dados do seu DNA foram sendo adaptados ao seu novo organismo, o que minimizou os problemas com rejeição e também deixaram o seu doador mais parecido com o senhor e o senhor mais parecido com o doador.
Ava modificou a tela da parede, que passou a reproduzir as imagens do interior do quarto.
– É incrível! Eu pareço já conhecer este rosto.
– Procurava alguém da sua família, antes do acidente, não?
– Sim. As únicas lembranças que eu tinha era dos amigos e funcionários do abrigo onde cresci.
– Com o uso de uma das novas tecnologias, conseguimos decifrar um pouco mais da codificação de DNA humano e pudemos localizar um primo seu. Pode parecer uma coisa triste, mas, coincidentemente o encontramos no momento em que passou por um acidente. O corpo perfeito, mas o trauma causou um grande dano cerebral e a sua morte. Assim, hoje o senhor é um misto de dois indivíduos, primos entre si.
Passei ainda algum tempo no centro de recuperação. Aos poucos fui recebendo informações sobre o mundo fora de lá. Os sistemas eletrônicos não permitiam acesso a tudo, mas pouco a pouco fui me ambientando.
Foram pouco mais de dezoito anos, mas o mundo havia mudado significativamente. Os cristais dominavam a paisagem. Novas ligas metálicas e materiais alternativos mais leves modificavam a paisagem urbana. O volume de lixo gerado diminuiu sensivelmente, pois os materiais de embalagem plásticos foram substituídos por um produto composto a partir de vegetais, que se decompõe rapidamente quando depositados no solo. Veículos flutuavam transportando pessoas e materiais. O mesmo acontecia no campo e o que era produzido, com maior qualidade e produtividade, chegava rapidamente nos centros consumidores, pois as rodovias, ainda importantes, deixaram de ser fundamentais para o transporte da produção. Pequenas propriedades se tornaram mais produtivas graças a tecnologia e boa parte da população retornava ao campo, com o conforto das cidades.
Nas industrias, as máquinas dominavam a gestão da produção. A presença humana na indústria e em alguns serviços se tornou menos intensa. Tudo poderia ter gerado mais desemprego e menor renda, mas não foi o que aconteceu. Os principais serviços, os melhor remunerados, passaram a ser aqueles onde gente cuida de gente.
O mercado financeiro passou a ser regulado pelo cubo e seus clones, proporcionando a melhor a distribuição de renda, dividindo os lucros das atividades produtivas e comerciais entre toda a população mundial, diminuindo a diferença entre as diversas camadas sociais. Os bancos focavam em gerir os recursos da poupança da população mundial. O potencial de cada economia era direcionado para as atividades que melhor equalizassem as necessidades globais. A concorrência desleal e predatória foi minimizada.
O cubo, que já acumulava muito conhecimento, registrava todo tipo de avanço tecnológico obtido e os tornava público, porém remunerando adequadamente quem pesquisava. Com isso, as patentes perderam sua importância e o compartilhamento de conhecimento foi valorizado e remunerado.
Na área da saúde, por exemplo, medicamentos e procedimentos passaram a ser universalizados, com baixo custo. Equipamentos de diagnóstico foram aprimorados e com isso a expectativa e qualidade de vida se tornaram crescentes. A população se tornou menos fértil, a mortalidade caiu sensivelmente, uma tendência de equilíbrio.
Como a produtividade no campo aumentou e a base alimentar foi equilibrada, a natureza passou a recuperar– se com maior velocidade. Aos poucos o clima também está voltando a recuperar a sua normalidade.
Eu insistia em sair do centro de recuperação. Não me era permitido.
– Doutora, já estou desperto há 32 dias, por que não posso sair? Gostaria de experimentar um pouco do ar fresco desse novo mundo!
– Ava, que possui um raciocínio lógico lhe explicará. Ava, padrão 258.
– Padrão 258 estabelecido. Desde que o cubo Dumont foi encontrado, forças contrárias ao interesse mundial tentam dominar sua tecnologia. A organização, autointitulada Genesis, acredita que o Senhor Carlos Dumont possua uma senha de acesso ao centro de inteligência da máquina. Tal codificação teria sido transferida para a sua memória quando o primeiro nano chip foi implantado no paciente, como preparação para o transplante de cérebro. Acredita-se que a chave de acesso somente seria liberada após a volta à consciência do Senhor Dumont.
– E eu tenho essa informação?
– Ainda não sabemos. Ava tem o monitorado todo este tempo e não encontrou nenhuma evidência. Só podermos libera-lo para acesso ao mundo exterior após termos a certeza de que a informação, caso exista, esteja segura.
– Então, sou um prisioneiro? Este foi o motivo da manutenção da minha vida?
– Não, mas ainda não podemos libera-lo. Seu DNA seria imediatamente reconhecido lá fora. Temos que lhe proteger e ao cubo.
Demorei muito a pegar no sono naquela noite. Quando acordei, Ava, não me cumprimentou, como de costume. Chamei-a. Não houve resposta. As paredes da sala também não respondiam aos meus estímulos.
Me desesperei quando quatro sujeitos entraram na sala, me seguraram e aplicaram um sedativo. Senti dor e me debati por alguns instantes.
Quando recobrei os sentidos, estava numa maca, no corredor de um pronto socorro público. Na minha testa um curativo. Em meu rosto pequenos cortes, talvez causados pelos estilhaços do vidro do para-brisa do carro.
Um enfermeiro gritava dizendo que eu já podia ser liberado. Havia um caso mais sério e que precisava da maca que eu ocupava. Não havia médico para o atendimento.
Ainda atordoado, caminhei para fora. Na calçada, pedintes acumulavam-se e o cheiro de urina predominava. O lixo se amontoava em alguns pontos. Os sons das insistentes buzinas doíam na minha cabeça. Juntei-me a milhares de pessoas que ocupavam as ruas da metrópole, num caos apressado.
Meu celular ainda estava comigo e vibrou em meu bolso. Na mensagem uma imagem com símbolos cuneiformes e o endereço de um site. O código do Cubo parecia existir.

Texto publicado na Coletânea E o futuro? Qual será? da Perse

Adnelson Campos
26/11/2019

 

 

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